4 de agosto de 2011

Terapia Nutricional nas doenças hepáticas

O fígado é o maior órgão do organismo, localizado na região lateral superior direita do abdômen e um dos mais importantes envolvidos na utilização e armazenamento de produtos finais da digestão ou nutrientes. Além dos substratos dietéticos recebe também substâncias endógenas, tais como ácidos graxos livres e aminoácidos derivados de outros tecidos e processos metabólicos.
Este órgão possui inúmeras funções no organismo. Uma delas é filtrar através de suas células de Kupffer, bactérias e células mortas provenientes do trato gastrointestinal. A produção de bile, elemento auxiliar da digestão que possibilita a absorção de ácidos graxos e colesterol e de muitas vitaminas solúveis em gordura também é responsabilidade do fígado, que tem ainda como função a produção de fatores da coagulação sangüínea; regular vários hormônios e metabolizar drogas; além de ser o local onde ocorre a formação de proteínas plasmáticas vitais como albumina, fibrinogênio, transferrina, ceruloplasmina e lipoproteínas. Enquanto os rins filtram o sangue e transferem muitas substâncias para a urina, o fígado elabora certos processos químicos que transformam substâncias tóxicas e insolúveis em outras capazes de se diluírem no sangue de modo a serem excretadas pela urina.
O fígado desempenha papel essencial no metabolismo dos carboidratos. Produtos de sua digestão como a galactose e frutose são convertidos em glicose dentro de suas células, os hepatócitos. O fígado armazena glicose sob a forma de glicogênio quando esta se encontra em excesso e, é também quem retorna glicose para o sangue quando seus níveis ficam baixos. É capaz ainda de produzir glicose a partir de precursores como ácido láctico e aminoácidos. Estes são processos chamados de glicogênese, glicogenólise e gliconeogênese, respectivamente e são regulados por vários hormônios, incluindo insulina, glucagon, hormônio do crescimento e determinadas catecolaminas.
 A conversão de aminoácidos a substratos que são utilizados na produção de energia e de glicose, bem como na síntese dos aminoácidos não essencias são caminhos metabólicos protéicos que ocorrem no fígado através da transaminação e desaminação oxidativa. O fígado pode ainda obter energia através dos ácidos graxos da dieta e do tecido adiposo por um processo chamado beta-oxidação.
O fígado está envolvido no armazenamento, ativação e transporte de várias vitaminas e minerais. Armazena todas as vitaminas lipossolúveis e a vitamina B12, além de minerais como o zinco, ferro, cobre e magnésio. As proteínas hepáticamente sintetizadas transportam a vitamina A, ferro, zinco e cobre. A vitamina A, folato e vitamina D são transformadas a sua forma ativa pelo fígado.
As doenças do fígado ou hepatopatias mais comuns de acontecer são: Hepatite, Doença Hepática Alcóolica, Cirrose e Insuficiência Hepática.
A hepatite é uma inflamação hepática com uma variedade de causas. Existe a hepatite A viral aguda causada pelo vírus da hepatite A (HAV), a hepatite B causada pelo vírus da hepatite B (HBV) e a hepatite não-A, não-B não causada pelo HAV ou pelo HBV, ainda que outros vírus tenham sido identificados como os da hepatite C, D, E e não-A e não-E. A hepatite crônica  refere-se à inflamação contínua com teste da função hepática anormal persistindo por mais de 6 meses. A hepatite ativa crônica, diagnosticada por biópsia do fígado, pode levar à insuficiência hepática e doença hepática de estágio final. Pode ser causada por distúrbios imunológicos (hepatite auto-imune), pelo vírus da hepatite B e C e agentes hepatotóxicos como o álcool.
A hepatite A é transmitida pela via fecal-oral, podendo ser contraída através de água para beber, alimento e água de esgoto contaminados. Seus sintomas incluem náusea, vômito, dor no abdômen, urina escura, amarelamento da pele (icterícia) e anorexia. Sérias complicações podem ocorrer em pessoas muito jovens ou idosas que contraem este tipo de hepatite, entretanto, o paciente adulto normalmente se recupera completamente.
A hepatite B e a C são transmitidas através do sangue, sêmen e saliva e podem levar a estados crônicos da doença. As hepatites D, E e não-A, não-B envolvem condições que estão sob estudos. Suas vias de transmissão são fecal-oral, parenteral ou a sexual.
A doença hepática alcoólica acontece devido as complicações do consumo excessivo de álcool. Ela progride em três estágios: esteatose hepática (fígado gorduroso), hepatite alcóolica e cirrose.
O álcool penetra em todos os tecidos, podendo causar lesões em qualquer órgão, mas sua oxidação ocorre principalmente no tecido hepático. Seu consumo excessivo proporciona a formação excessiva de hidrogênio no organismo além de um subproduto de seu metabolismo chamado acetaldeído. O acetaldeído em excesso no sangue diminui a ativação vitamínica, principalmente das vitaminas lipossolúveis, levando a hipovitaminose.
O excesso de hidrogênio produz o fígado gorduroso, hiperlipidemia, elevado ácido láctico e baixo açúcar sangüíneo. O acúmulo de gordura, o efeito do acetaldeído sobre as células hepáticas e outros fatores ainda desconhecidos levam à hepatite alcóolica. O passo seguinte é a cirrose. O conseqüente prejuízo da função hepática altera a química do sangue, causando um elevado nível de amônia que pode levar ao coma hepático e a morte.
A cirrose é o estágio final da lesão hepática caracterizada por repetidos episódios de necrose seguidos por regeneração, o que leva a desorganização da estrutura normal dos lóbulos hepáticos. Com a cirrose, a pressão interna do fígado aumenta levando ao aumento na pressão da veia porta, criando, conseqüentemente, a hipertensão portal. Isso faz com que o fluxo sangüíneo dentro do fígado seja desviado para dentro de vasos sistêmicos de baixa resistência. À medida que o sangue circula por veias de pressão baixa, estas se tornam distendidas e desenvolvem varizes, mais comumente no esôfago e estômago, o que pode levar a morte caso aconteça um sangramento gastrointestinal. Uma outra complicação da hipertensão portal é a formação de líquido dentro da cavidade peritoneal, quadro denominado ascite, que pode ser ainda facilitado por baixos níveis de albumina.
Não é só a doença hepática alcoólica que leva à cirrose. Existem outras formas de se desenvolver a doença. Insuficiência Cardíaca Congestiva, Colangite Esclerótica Primária, Hepatite Viral Crônica ou Auto-Imune, Atresia Biliar, exposição à drogas ou substâncias químicas a longo prazo, assim como distúrbios metabólicos herdados podem levar à doença.
A insuficiência hepática ocorre quando a função do fígado é reduzida para 25% ou menos. Isso pode acontecer progressivamente ou de forma aguda levando a uma conseqüência conhecida como Encefalopatia Sistêmica Portal ou Encefalopatia Hepática. A encefalopatia é uma síndrome neuropsíquica multisistêmica, manifestada por uma grande variedade de alterações neuromusculares e de personalidade e comportamento. Seu quadro clínico varia de acordo com o estágio da doença, podendo acontecer coordenação prejudicada e tremor de extremidade ou flapping, fala com pronúncia indistinta, perda de consciência e, coma, que seria o estágio mais grave. A causa exata da encefalopatia hepática não é conhecida, mas a amônia é considerada um importante fator no desenvolvimento desta condição por ser uma toxina cerebral direta,, e quando o fígado falha, seus níveis no organismo ficam altos pela impossibilidade de transformá-la em uréia.
Outra importante hipótese para o desenvolvimento de encefalopatia hepática se baseia na teoria do neurotransmissor alterado. Na doença hepática é possível acontecer um desequilíbrio no aminoácido plasmático, no qual os níveis de aminoácidos de cadeia ramificada são diminuídos e os níveis de aminoácidos aromáticos são aumentados. Estes desequilíbrios resultam em neurotransmissores cerebrais alterados por também serem encontrados no fluido cerebroespinhal.
Os objetivos da terapia nutricional na doença hepática são: manter ou melhorar o estado nutricional corrigindo possíveis deficiências como a subnutrição; prevenir uma lesão adicional das células hepáticas, aumentando a regeneração do órgão; prevenir ou aliviar a encefalopatia hepática e outros distúrbios metabólicos tratáveis por terapia nutricional. Durante o curso da hepatopatia, a função hepática pode mudar drasticamente e a conduta nutricional deve ser ajustada de acordo com sua evolução.
Um achado comum em pessoas portadoras de doença hepática é a desnutrição, condição mais verdadeira em alcoólatras porque o etanol cria anormalidades nutricionais específicas e graves. O próprio metabolismo alterado devido a disfunção hepática, afetando a função dos micro e macronutrientes podem contribuir de maneiras variadas para a desnutrição. Outros fatores como ingestão oral inadequada causada por anorexia, saciedade precoce, náusea e vômito associados a doença hepática e drogas utilizadas para tratá-la, assim como as próprias restrições dietéticas e dietas hospitalares desagradáveis também podem levar à desnutrição. Contribuem ainda para esta condição a má-digestão, malabsorção e perdas malabsortivas específicas que podem acontecer devido ao uso de medicamentos.
A avaliação do estado nutricional em pessoas portadoras de doença hepática não é tarefa simples. Isso porque a maioria dos marcadores tradicionais do estado nutricional, como indicadores sangüíneos do estado protéico (albumina, transferrina, pré-albumina e proteína que se liga ao retinol) são afetados pela doença hepática e suas conseqüências. Geralmente é feito o índice creatinina-altura e a excreção de nitrogênio na urina de 24h, mas estes não refletem adequadamente o estado protéico ou o equilíbrio de nitrogênio porque sua validez depende de um rendimento adequado de urina, função renal, ingestão de proteína, da ausência de infecção e síntese de uréia normal a partir de amônia pelo fígado. As medidas corpóreas (avaliação antropométrica) também não são confiáveis. O peso na doença hepática é significativamente alterado pelo estado de hidratação e pela presença de edema e ascite. Entretanto, as medidas de braço como circunferência do músculo do braço e dobra cutânea triciptal tem um grande valor para analisar a massa muscular e reserva adiposa. A avaliação do estado de nutrição corpórea de vitaminas e minerais torna-se um empreendimento ainda mais complexo de se realizar se for considerando o papel do fígado na utilização destes micronutrientes.
A terapia nutricional na doença hepática pode reverter a desnutrição, melhorando os resultados clínicos. Em relação as necessidades energéticas, estas são aumentadas devido ao fato de uma extrema perda de peso ocorrer freqüentemente nestas ocasiões. As necessidades calóricas são ainda maiores se a hepatopatia estiver associada a níveis de estresses mais elevados como na infecção e na sepse.
Na disfunção hepática, os carboidratos devem fornecer a maior parte das calorias da dieta. O tipo de carboidrato (simples ou complexo) que será ofertado em maior quantidade depende da presença de anormalidades na homeostasia da glicose, como hiperglicemia e intolerância à glicose, comuns na cirrose; e hipoglicemia, mais comum na hepatite e cirrose de estágio terminal. Essas anormalidades acontecem devido a insuficiência do fígado em manter adequado os níveis de açúcar no sangue. Quando estes estão altos, os carboidratos complexos devem estar em maior proporção na dieta do que os simples, porque são absorvidos para o sangue lentamente. Associar fibras, principalmente as solúveis, a estes carboidratos constitui uma medida capaz de interferir potencialmente no metabolismo da glicose, reduzindo seus níveis no sangue.
A disfunção hepática é marcada pelo processamento prejudicado de gorduras. Os lipídios não devem estar em excesso na dieta principalmente por dois motivos: para evitar a presença de gordura nas fezes (esteatorréia), uma vez que na disfunção hepática a absorção das gorduras pode estar prejudicada; e para não contribuir para o acúmulo de lipídios nos hepatócitos, sobretudo de triglicerídeos, o que levaria à esteatose hepática e contribuiria para a hiperlipidemia. Episódios de esteatorréia fazem com que os triglicerídeos e gorduras da dieta sejam substituídos por triglicerídeos de cadeia média, que são facilmente absorvidos.
O processo inflamatório característico na hepatopatia faz com que seja necessário selecionar o tipo de gordura que deve estar presente na dieta. Isso porque as gorduras ao serem metabolizadas pelo organismo, possuem a capacidade de formar verdadeiros compostos inflamatórios, substâncias semelhantes a hormônios que podem ser biologicamente amigáveis ou perigosas chamadas de  prostaglandinas, leucotrienos e tromboxanos ou coletivamente de eicosanóides.  As gorduras ômega-3 e ômega-9 produzem compostos menos inflamatórios, portanto mais favoráveis. A gordura ômega-6 deve estar presente na dieta em equilíbrio com a ômega-3, isso porque produz compostos inflamatórios desfavoráveis. As gorduras que devem ser realmente evitadas são as saturadas. Estas podem contribuir para o processo inflamatório a medida que levam a formação de prostaglandinas e leucotrienos inflamatórios. A gordura ômega-3 é encontrada em óleos de peixe, peixes de água fria e semente de linhaça. A ômega-6 é encontrada em óleos vegetais; enquanto que a ômega-9 é encontrada principalmente no azeite de oliva.
A proteína é o macronutriente mais discutido na hepatopatia. Como os aminoácidos não são processados normalmente, o excesso de proteínas na dieta pode precipitar a encefalopatia hepática, entretanto, uma restrição desnecessária pode contribuir para a queda na síntese de proteínas e desnutrição. A sensível queda na síntese das proteínas, pode causar deficiência de material para a elaboração de anticorpos, o que conseqüentemente, leva a diminuição das defesas naturais do organismo contra processos inflamatórios e infecciosos. Condição que pode ser ainda mais acentuada, levando em consideração que os portadores de doença hepática, especialmente aqueles com cirrose hepática, são extremamente propensos a desenvolverem deficiência das vitaminas A, D, E,  K, Tiamina, B6, Niacina, B12 e ácido fólico; e também de zinco, ferro, magnésio, potássio e fósforo; muitos dos quais importantíssimos para os mecanismos imunológicos. Por isso na hepatopatia também é fundamental que a alimentação seja rica em frutas e vegetais, que são fontes ricas não só em vitaminas e minerais, mas também em compostos naturais capazes de estimularem a ação do sistema imunológico e potencializarem seu funcionamento.
As necessidades de proteína vão ser definidas de acordo com o grau de compensação da doença e com os objetivos que se pretende alcançar através delas. Por exemplo, no paciente estável, uma dieta normoprotéica pode ser administrada. Este valor pode ser aumentado caso seja necessário promover o acúmulo ou balanço nitrogenado positivo, o que é comum em pacientes desnutridos. Se o paciente está hospitalizado e instável, em situações de estresse, tais como hepatite alcoólica ou na doença descompensada (sepse, infecção, sangramento gastrointestinal, ascite grave) pode ser necessário mais proteína, que deve ser administrada com cuidado.
A relação entre aminoácidos aromáticos e ramificados deve ser feita independente da quantidade de proteína presente na dieta. Há evidência de que a encefalopatia hepática está relacionada com um distúrbio do transporte de aminoácidos pela barreira hematoencefálica. Especificamente, altos níveis de aminoácidos aromáticos - fenilalanina, tirosina e triptofano - são encontrados no cérebro e no líquido cerebroespinhal. Esta anormalidade está relacionada com altos níveis de falsos neurotransmissores feniletanolamina, octopamina e GABA, e todos os quais parecem produzir encefalopatia. Têm-se observado que pacientes portadores de doença hepática têm níveis séricos relativamente elevados de aminoácidos aromáticos e níveis relativamente baixos de aminoácidos de cadeia ramificada. A amônia, além de ser diretamente tóxica para o cérebro, ainda promove o transporte dos aminoácidos aromáticos pela membrana celular.
As dietas baseadas em proteína vegetal e caseína têm se mostrado úteis na redução da encefalopatia por serem mais baixas em aminoácidos aromáticos e mais altas em aminoácidos de cadeia ramificada que as baseadas em carnes. A proteína vegetal é baixa em metionina e em aminoácidos amoniogênicos, bem como é enriquecida em aminoácidos ramificados. O alto conteúdo de fibras de uma dieta de proteína vegetal também pode desempenhar um papel na excreção dos compostos nitrogenados. Inicialmente, então, as proteínas de produtos lácteos e vegetais devem gradualmente substituir a proteína animal para atingir as necessidades calculadas, enquanto está se monitorando os sintomas clínicos.
A restrição de sódio e líquidos pode ser necessário no tratamento de doenças hepáticas. Esta medida visa amenizar a retenção de líquidos e sódio que poderiam resultar em quadros de edema e ascite.

Lúcia Moura Cardoso – Nutricionista Clínica Funcional e Mestre em Psicologia Social (Escrito em 11/07/2003)

Um comentário:

  1. Dra. Lucia.
    Parabéns pela iniciativa de seu blog. Apesar da distancia, continuo tentando manter seus ensinamentos sobre a minha reeducação alimentar. Será muito útil , acompanhar sempre seus ensinamentos.
    um grande abraço
    Thompson

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